O dia 9 de julho é, provavelmente, o feriado mais importante da cidade de São Paulo. Marcado eternamente pelas letras MMDC, o “feriado” é um tributo aos heróis daquele momento histórico. Contudo, se escavarmos a rica história do nosso estado, encontraremos outro acontecimento tão importante quanto e que, curiosamente, aconteceu no mesmo dia. Essa data é 9 de julho de 1562 quando São Paulo dos Campos de Piratininga, uma emergente vila de apenas dois anos de idade, precisou se defender de um forte ataque indígena.

Na ocasião, a cidade estava ameaçada por uma coligação de nações indígenas formadas pelas tribos carijós, guaianás, guarulhos e tupiniquins que não aceitavam a presença do homem branco em suas terras. Para se defender dos poderosos guerreiros indígenas, a população do pequeno vilarejo contava com dois dos mais temíveis guerreiros da época: João Ramalho, o primeiro homem branco a habitar o planalto e Tibiriçá, o Vigilante da Terra, principal líder tupiniquim que se aliara a Ramalho dando-lhe, inclusive, sua filha Bartira como esposa.

João Ramalho e Bartira
João Ramalho e Bartira

Voltando ao conflito, a batalha começou quando Jaguaranho, também conhecido como Onça Feroz, um jovem guerreiro filho de Piquerobi, o líder da aldeia Aruraí (localizada onde hoje está São Miguel Paulista), ordenou uma ofensiva contra a capital. O confronto ganha tons dramáticos quando se descobre que além de pai de Jaguaranho, Piquerobi era irmão de Tibiriçá e de outro importante líder indígena aliado aos jesuítas, Caiubi ou, como era conhecido, Flecha de Madeira.

Com o passar do conflito e a consequente salvação da vila, o momento se tornou uma das maiores ironias históricas da nossa história. O grande “x” da questão fica por conta de João Ramalho que, embora pioneiro em habitar o planalto, fora excluído do processo “civilizatório” da região logo após a chegada dos jesuítas. E essa exclusão era tão intensa que a região de Santo André, onde Ramalho vivia foi suprimida por ordem de Mem de Sá, então governador geral da província. Por sorte, ela foi incorporada menos de dois anos antes do ataque que poderia ter dizimado a cidade dos jesuítas.

O Conflito Entre Ramalho x Os Jesuítas E A Atuação de Tibiriçá

João Ramalho e os jesuítas sempre foram “inimigos”. No ano de 1552, os filhos do patriarca ameaçaram de morte o padre Leonardo Nunes quando este expulsou Ramalho da missa que celebrava em Santo André já que, por força da “lei”, ele havia sido excomungado. Embora o padre Manoel da Nóbrega tenha conseguido, anos mais tarde, contornar o conflito e manter a neutralidade de Ramalho, os interesses dos dois sempre foram divergentes.

Dessa forma, quando o pequeno colégio jesuíta e a vila que o circundava começaram a sofrer a gigantesca ameaça de serem varridos do mapa, os padres foram obrigados a recorrer à ajuda de Ramalho e pedir sua proteção.

O outro lado dessa defesa de São Paulo foi feito por Tibiriçá, o principal líder dos índios que habitavam o planalto. O cacique, que sempre fora um defensor e entusiasta do homem branco, decidiu acolher e incorporar ao seu cotidiano o primeiro homem branco que conseguiu subir o planalto e ficar em seu território: João Ramalho. Ninguém conhece bem suas origens, mas todos sabem de sua atuação importante junto ao cacique. Por volta de 1508, o misterioso homem branco se tornou um líder informal dos tupiniquins e Tibiriçá passou a consulta-lo sempre para tomar qualquer decisão. Foi graças aos conselhos de Ramalho que o cacique formou uma boa aliança com Martim Afonso de Souza, fundador de São Vicente, e estabeleceu um profundo e duradouro acordo com os jesuítas.

João Ramalho aponta o caminho de Piratininga a Martim Afonso de Souza. Quadro de Benedicto Calixto
João Ramalho aponta o caminho de Piratininga a Martim Afonso de Souza.
Quadro de Benedicto Calixto

Além de permitir que Nóbrega e Anchieta erguessem um colégio em suas terras, diz a história que ele mesmo auxiliou a erguer com as próprias mãos e, com isso, se tornou um “fundador, benfeitor e conservador da Casa de Piratininga”, de acordo com o relato de Anchieta. Seu envolvimento com a causa do homem branco foi tão grande que o chefe aceitou o batismo e adotou o nome de Martim Afonso Tibiriçá. Anos depois, devido à toda sua dedicação e auxílio aos jesuítas, ele acabaria nomeado pelo Conselho Real membro da influente Ordem de Cristo, originária da antiga Ordem dos Cavaleiros Templários – sinal de prestígio inequívoco, e além de tudo rentável, já que o posto implicava recebimento de uma “tença”, ou pensão.

O grande objetivo do chefe indígena era defender os próprios interesses e, também o de sua tribo. Ao associar-se com Ramalho, Martim Afonso e os jesuítas, ele julgava que teria vantagens estratégicas, políticas e bélicas. O problema é que o tiro acabou saindo pela culatra e, sem querer, ele contribuiu muito para a destruição dos tupiniquins.

Suas alianças acabaram reesquentando conflitos dos tupiniquins com os guaianás, carijós e tamoios. Além disso, suas alianças acabaram resultando em um confronto interno dos tupiniquins, o que acabou levando ao conflito contra Piquerobi e Jaguaranho. Por fim, como bem colocou o historiador John Manuel Monteiro, a aliança revelou-se “muito nociva” para Tibiriçá: “As mudanças nos padrões de guerra e as graves crises de autoridade, pontuadas pelos surtos de contágios, conspiraram para debilitar, desorganizar e, finalmente, destruir os tupiniquins”, escreveu o autor de Negros da Terra.

A Batalha Por São Paulo

A batalha para expulsar o homem branco de São Paulo começou graças à submissão dos indígenas aos novos moradores da região. Revoltados com essa situação, um bando de rebeldes tupiniquins, oriundos da aldeia Uraraí, e sob o comando de Jaguaranho, atacaram a cidadela em 9 de julho de 1562. A ofensiva ficou caracterizada por um ataque-surpresa e veio através da confluência dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, local onde estava a “casa” de Tibiriçá.

Cacique Tibiriçá
Cacique Tibiriçá

Aos brados de “jukaí karaíba!” (morte aos portugueses!), os revoltosos, segundo relato de Anchieta, “deram de manhã sobre Piratininga com grande corpo de inimigos, pintados e emplumados e com grandes alaridos, aos quais saíram logo a receber os nossos discípulos, que eram muito poucos, com grande esforço, e os trataram bem mal, sendo coisa maravilhosa que se encontravam às flechadas irmãos com irmãos, primos com primos, sobrinhos com tios. E, o que é mais, dois filhos, que eram cristãos, estavam conosco contra seu pai, que era contra nós. De maneira que parece que a mão de Deus os apartou e os forçou a fazer isso sem que eles o entendessem”.

Segue o relato do padre: “As mulheres dos portugueses e os meninos, e também dos mesmos índios, recolheram-se a maior parte à nossa casa e igreja, por ser um pouco mais segura e forte, onde algumas das mestiças estavam toda a noite em oração com velas acesas ante o altar, e deixaram as paredes e os bancos bem tintos de sangue, que se tiravam com as disciplinas (o costume de açoitar-se como forma de penitência), o qual não duvido que pelejava mais rijamente contra os inimigos que flechas e arcabuzes”.

“Tiveram-nos em cerco dois dias, dando-nos sempre combate, ferindo muitos dos nossos. Mas dos inimigos foram muitos mais os feridos e alguns mortos, dentre os quais um que foi nosso catecúmeno, e fora quase capitão dos demais, o qual, sabendo que todas as mulheres se haviam de recolher à nossa casa, e que aí havia mais que roubar, veio dar combate pela cerca de nossa horta, mas aí mesmo achou uma flecha que lhe deu pela barriga e o matou, dando-lhe a paga, que ele nos queria dar, pela doutrina que lhe havíamos ensinado.”

Segundo vários estudos e cruzamentos de relatos, o “quase capitão” que tentou invadir a igreja e foi citado por Anchieta em seu relato, era o jovem Jaguaranho. Essa dedução é baseada no relato do também jesuíta Simão de Vasconcelos, que em seus escritos, afirma que o agressor era “filho de Araraig”, nome da aldeia chefiada por Piquerobi.

A história dessa batalha conta que os rebeldes tentaram convencer Tibiriçá a ajudar na expulsão dos portugueses, mas este, já catequizado, acabou revelando os planos aos seus novos amigos. Como existiu uma desconfiança por parte dos índios, o ataque surpresa aconteceu e encontrou Ramalho e vários outros colonos armados e prontos para a batalha. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi sangrento, mas São Paulo sobreviveu!

Honra À Tibiriçá

Tibiriçá viria a falecer cinco meses após a chamada Guerra de Piratininga, em 25 de dezembro de 1562. O prestígio do líder era tão grande que, em uma carta ao superior da companhia, Diego Laynes, redigida em 16 de abril de 1563, o padre Anchieta anotou: “Morreu nosso principal e grande amigo e protetor Martim Afonso, o qual depois de se haver feito inimigo de seus próprios irmãos e parentes por amor a Deus e à sua Igreja, e depois de lhe haver dado Nosso Senhor a vitória sobre seus inimigos, estando ele com grandes propósitos e muito determinado a defender a causa dos cristãos, e nossa Casa de São Paulo, que ele bem sabia haver sido edificada em sua terra por amor dele e de seus filhos, quis Deus conceder-lhe o galhardão por suas obras, dando-lhe uma doença de câmaras de sangue, da qual não havia melhora. No dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo, morreu para nascer em nova vida de glória, como esperamos. Foi enterrado em nossa igreja, com muita honra”.

O corpo de Tibiriçá permaneceu sepultado na antiquíssima igreja de São Paulo até 1896, quando um a chuva fez o prédio desabar. Nesse momento, seus restos foram transferidos então para a igreja do Coração Sagrado de Maria. Em janeiro de 1933 quando, “por iniciativa de vários paulistas ilustres, com cooperação do clero e do Instituto Geográfico de São Paulo, foram os ossos do chefe índio trasladados para a cripta da nova catedral paulista”, a Sé.

Referências: https://s.guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/sao-paulo-cerco-piratininga-433644.shtml 

https://www.geni.com/people/Cacique-Tibiri%C3%A7%C3%A1-Martim-Afonso/362192182660003744

4 Comments

  1. Belíssima história! São Paulo talvez nem existisse se não fosse o cacique Tibiriçá. Admiro muito esse sujeito. São Paulo deveria ter ele como patrono e fundador. Ninguém faria o que ele fez, é um herói!

  2. Esta história paulista daria um lindo e interessante filme…crescemos assistindo filmes de faroeste com guerras entre índios e brancos mas, se formos ver, a história da colonização paulista é muito mais rica que a epopeia norte-americana. Quem sabe tenhamos, num futuro bem próximo, cineastas que se dediquem a reproduzir nas telas a nossa valorosa história e também as nossas interessantes estórias. O seriado “A Muralha” é um exemplo que pode influenciar e incentivar nossos produtores de filmes.

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