O silêncio de oito mil vozes: o ato ecumênico de 1975

O resgate que faremos hoje é triste. É a história de uma manifestação contra um dos assassinatos mais covardes cometidos pela ditadura militar no Brasil, o assassinato do jornalista e diretor de jornalismo da TV Cultura, Vladimir Herzog. Nascido na cidade de Osijek (ex-Iugoslávia, atual Croácia), em 27 de junho de 1937, era filho de Zigmund e Zora Herzog. Desde muito cedo, teve que aprender a fugir.

Quando tinha quatro anos, por exemplo, sua família e ele tiveram que fugir de Banja Luka, cidade em que possuíam uma loja de porcelanas, devido à invasão nazista. O livro de Audálio Dantas, “As duas guerras de Vlado Herzog”, retrata bem esse período terrível que Vlado passou quando criança.

Vale a curiosidade que seu nome de batismo é, realmente, Vlado. Vladimir veio depois, quando já estava em solo brasileiro e fez o pedido de naturalização. A ideia era se aproximar do país que lhe concedera abrigo, trabalho e uma chance de recomeçar com a família.

A carreira jornalística de Herzog é incomparável. O melhor registro de toda essa caminhada está no acervo de seu instituto. Um breve resumo pode ser acessado por aqui: https://www.acervovladimirherzog.org.br/biografia.php . Jamais teria a pretensão ou ousadia de reescrever uma história como essa.

Vamos aos eventos do dia 31 de outubro de 1975, quando oito mil pessoas compareceram a manifestação que seria a faísca para a derrubada da ditadura militar no Brasil. Esse ato ecumênico foi convocado por Dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o reverendo evangélico Jayme Wright. A motivação de tudo isso?

O assassinato de Vlado no dia 25 de outubro do mesmo ano. Na ocasião, os militares alegavam que a TV Cultura estava tomada por comunistas e que Vlado era um deles. Vários importantes jornalistas da época foram presos, como Paulo Markun e Anthony de Christo.

O nome de Herzog também estava nessa lista e ele foi intimado a depor no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão de inteligência e tortura que era comando pelo exército.

Apesar do temor militar, Vlado se apresentou voluntariamente na manhã do próprio dia 25. A partir de sua apresentação, entrega de documentos e pertences pessoais, ele nunca mais sairia da sede do DOI-Codi, que ficava no bairro do Paraíso, Zona Sul de São Paulo. O jornalista foi barbaramente torturado, passando de espancamentos com pedaços de maneira à temível cadeira do dragão, onde tomava choques e mais choques em diversas partes do corpo.

Os agentes da ditadura queriam que ele falasse sobre o comunismo dentro da emissora, assunto desconhecido pelo jornalista. O resultado disso tudo foi a morte de Herzog. Os documentos oficiais relatavam suicídio por enforcamento, fato impossível de ser real, tendo em vista as fotos e os materiais amplamente divulgados (que não serão compartilhados aqui, por serem extremamente pesados).

Um dos jornais com maior cobertura à época, o Estado de São Paulo, recebeu uma nota dos militares sobre a morte de Herzog e nela estava escrito que o jornalista faleceu por “asfixia mecânica por enforcamento”. Foi a cobertura da imprensa e contra a vontade do regime, que instaurou uma fagulha de revolta em uma população cada vez mais desgostosa com a ditadura.

A morte de Herzog foi a faísca que faltava. Diante de tamanha revolta, da insatisfação popular com tudo que acontecia, da cobrança de várias entidades por respostas, o ato ecumênico de 31 de outubro foi um marco.

Em 31 de outubro, o Estado publicou a posição do então presidente Geisel sobre o caso, “um fato lamentável”. A matéria também trazia declarações de uma alta fonte do governo dizendo que o caso não deveria gerar inquietação, pois o governo agiria pra impedir novos incidentes. Abaixo, os primeiros parágrafos da matéria:

Vale outro pequeno destaque, da mesma página do jornal, sobre os ritos fúnebres de Herzog. Segundo sua religião, o judaísmo, os suicidas são celebrados em um ambiente diferente das pessoas que morrem por causas naturais ou são assassinadas.

Mesmo com o laudo do exército, que acusava o suicídio como causa da morte, o rabino que conduziu a cerimônia de sepultamento de Herzog não a realizou no ambiente para suicidas, já que, não foram encontrados indícios que comprovassem o suicídio do jornalista.

Diante de todo esse cenário e toda essa repercussão, no dia 31 de outubro de 1975, foi realizado o ato ecumênico na Catedral da Sé. Com oito mil pessoas, em silêncio, o ato foi celebrado por Dom Paulo Evaristo Arns que, em vários momentos, condenou o assassinato e chegou a citar mandamentos e passagens bíblicas para fortalecer seu ponto.

A manifestação, silenciosa, poderia ter sido maior. Diversos cidadãos, que estavam a caminho da Catedral da Sé, foram parados em bloqueios que foram montados em toda a cidade.

A ditadura militar, ciente desse ato, mobilizou centenas de policiais para “evitar qualquer problema” na missa. Silencioso, organizado e triste, o ato transcorreu normalmente. A saída, também pacífica, foi uma “derrota” ao regime que, acostumado à violência e agitação, não soube como agir diante da silenciosa revolta.

Esse ato é considerado a rachadura do regime ditatorial. A partir da morte de Herzog e dessa manifestação popular, o regime começaria a sofrer contestações e ser alvo de insatisfação popular, culminando com sua queda em 1985.

Dom Paulo Evaristo Arns e o rabino Henry Sobel celebram missa ecumência de um ano da morte do jornalista Vladimir Herzog, no cemitério Israelita do Butantã em 1976

Referências: https://www.acervovladimirherzog.org.br/biografia.php

https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19751031-30860-nac-0015-999-15-not/busca/Geisel+Herzog

https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19751028-30857-nac-0021-999-21-not

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